27.1.07

MORREU O INSURRECTO DA BONDADE




1. Corria o ano de 1954, era Inverno, chovia muito e fazia frio em Paris.


Milhares de pessoas têm a vida em risco. Milhares de outras, porém, parecem manter o coração gelado.


É então que um sacerdote vê aquilo tudo, mas, ao contrário de outros, resolve intervir.


Chamava-se Henri-Antoine Groues, nascera em 1912, mas tornou-se mundialmente conhecido como Abbé Pierre, nome que adoptou na Segunda Guerra Mundial, quando forjou documentos para salvar refugiados.


Entretanto, não foi só a guerra de bombas que o perturbou. Foi também — e bastante — a guerra da injustiça que o afligiu.


Para lhe fazer frente, não recorre apenas a esmolas. Recorre igualmente à sua palavra desassombrada.


A 1 de Fevereiro de 1954, faz sair, na Rádio Luxemburgo, um manifesto que o celebrizou a ele e inquietou o mundo: A insurreição da bondade.


50 anos depois, em 2004, lança, no La Croix, um novo apelo para arrancar 3 milhões de pessoas da angústia da miséria.


«Para vencer o mal — diz o documento — temos de ousar abrir os olhos e lutar. O mundo é infeliz e aqueles que entre nós não passam fome, não estão desempregados nem sem casa, devem saber ajudar as pessoas que sofrem».


Morreu, aos 94 anos, no passado dia 22 de Janeiro.


2. O seu grande legado encontra-se corporizado na comunidade dos Companheiros de Emaús, que, hoje em dia, está espalhada em mais de 40 países.


O aparecimento desta comunidade verificou-se em 1949, nos arredores de Paris, graças ao recrutamento de voluntários feito por Abbé Pierre.


Tudo terá começado com o encontro entre ele e um homicida que, desesperadamente, procura o suicídio. O sacerdote conseguiu convencer o indivíduo a fazer o seu caminho de salvação oferecendo-se para ajudar o movimento, depois de lhe ter contado a sua história pessoal, de renúncia ao cargo de deputado para ajudar os sem-abrigo da cidade.


A principal actividade desta comunidade consiste, basicamente, na recuperação de objectos usados, de mobiliário e de roupa, que depois são vendidos.


Só na França, a venda de roupa em segunda mão rendeu, em 2005, 117,7 milhões de euros.


A prioridade é a ajuda aos mais marginalizados, como toxicodependentes ou idosos sem apoio familiar. A Emaús Internacional coordena 446 grupos locais com incidência na agricultura, no ensino, na integração de crianças de rua e de comunidades de sem-abrigo e em bairros urbanos degradados.


Também tem desenvolvido um meritório trabalho entre as comunidades de imigrantes, na defesa de direitos de trabalho destes grupos e tem desenvolvido acções de sensibilização contra o tráfico de mulheres e crianças para a prostituição



3. Mas se a sua obra foi apreciada, a sua voz tornou-se incómoda e a sua presença, muitas vezes, inconveniente, embora respeitada.


O Presidente francês, Dr. Jacques Chirac, falou de Abbé Pierre como de «uma imensa figura, uma consciência, um homem que personificou a bondade».


Este sacerdote, ainda segundo o Chefe de Estado, «representou o espírito de rebelião contra a miséria, o sofrimento, a injustiça e a força da solidariedade».


A bondade está longe de poder ser conectada com a passividade ou, muito menos, com a indiferença.


A bondade nasce da sensibilidade e é alimentada pela misericórdia. Ela significa militância na causa do irmão sofredor, recusando o desinteresse ante a sua sorte.



4. Abbé Pierre tinha o raro dom de comunicar bem. Entrava facilmente no coração das pessoas. Escreveu muitos livros. Muitas frases suas tornaram-se máximas verdadeiramente antológicas. Deixo aqui algumas, poucas:


— Eu sofro com o sofrimento dos sofredores.


— Um sorriso é menos caro que a electricidade e dá mais luz.


— A amizade é o que vem ao coração quando fazemos em conjunto coisas belas e difíceis.


— Que os que têm fome tenham pão. E que os que têm pão tenham fome (de justiça e de amor).


— Viver é aprender a amar.


— É preciso que a voz dos homens sem voz impeça os poderosos de dormir.


— Só somos felizes na felicidade que damos. Dar é receber.


— Sartre dizia que o inferno são os outros; eu digo que o inferno é cada um viver afastado dos outros.


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